"Era uma mulher reservada, sem ânimo para espantar o medo de se engalfinhar com o mundo. Um dia descobriu-se doente por um médico sem pruridos de linguagem: «Tem um problema raro e irreversível. Nem vale a pena tratar. Dou-lhe dois anos de vida e uma certeza: não vai sentir nada.» Podia ter chorado, como sempre fazia perante as pequenas contrariedades do dia-a-dia, ou desesperado, como seria normal numa situação de morte anunciada, mas a verdade é que a notícia lhe provocara um secreto regozijo. Era a sua oportunidade de mudar, de definir objectivos, de gizar o seu destino no papel crespo que lhe restava. Elaborou, então, uma lista pormenorizada de desejos a cumprir e durante esses dois anos riu, brincou, viajou, bebeu, dançou, beijou e amou pela medida larga dos desprovidos de preconceitos e espartilhos. No final do prazo, despediu-se com uma festa de arromba dos amigos entretanto conquistados e retirou-se para um confortável hotel isolado no meio da mata, onde se dedicou a ler romances de qualidade duvidosa e a observar vagamente plantas e pássaros por não saber mais o que fazer. Sete anos passaram. A mulher continua a privilegiar a inércia, enquanto dura o dia; porém, todas as noites se lava e perfuma, veste uma elegante lingerie preta, aplica uma maquilhagem ligeira, destranca a porta do quarto e se deita, hirta, mãos cruzadas sobre o peito, à espera que algo extraordinário aconteça."
Alegre ou Triste
Foto: Christian Tagliavini
Ouve-se: Gotan Project - Diferente
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Um comentário:
Pode partilhar à vontade. Sugiro, no entanto, o uso de aspas. Neste e nos outros textos que cita.Também faço o mesmo no meu blog, quando dou a palavra a outros autores.
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