sexta-feira, dezembro 25, 2009


Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.
Nuno Júdice, in "A Fonte da Vida"


Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar.
Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota.
Madre Teresa de Calcuta

quinta-feira, novembro 26, 2009


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.

Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Ana Salomé

sábado, novembro 07, 2009



"...Quando a estrada fica interrompida,
o desvio pode ser interessante..."
Martha Medeiros




quinta-feira, novembro 05, 2009


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma (...)
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la (...)
António Cícero
Foto de Maria Flores



quinta-feira, outubro 29, 2009




O tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias, como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo, mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
Eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar, que eu amava quando imaginava que amava.
Era a tua voz que dizia as palavras da vida.
Era o teu rosto.
Era a tua pele.
Antes de te conhecer, existias nas árvores e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
Muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
 
José Luís Peixoto

quinta-feira, outubro 08, 2009


 
"Habituamo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. 
Consertar? 
Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. 
Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. 
Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo."
 
Inês Pedrosa 
Nas tuas mãos

sábado, outubro 03, 2009

O Silêncio é, por natureza, provocador de diálogos,
e suscita, invariavelmente, muitos sons até então desconhecidos.

quarta-feira, setembro 23, 2009



Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer coisa, e efectivamente a quer dizer.
Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta(...)

Livro do Desassossego
Bernardo Soares /Fernando Pessoa

sexta-feira, agosto 21, 2009


"Cada página que escrevo vai numa garrafa de naufrago lançada da praia. Carta solitária suplicando resgate. Uma vida á deriva. A outra praia qualquer chegará a mensagem. Alguém que passeia, curioso, sobre a garrafa, lê a carta e, espantado, vê-se ao espelho e reconhece o autor.
É preciso afirmar aquilo em que se acredita. É preciso usar as grandes palavras: fé, amor, vergonha, coragem. É preciso dizer que a paixão, mais do que a razão, redime e nos torna santos.
E, sem pudor dos afectos, confessar que sinto muito."
Nuno Lobo Antunes
Sinto muito

sexta-feira, agosto 14, 2009


"Na vida [...] todos têm direito a um grande amor. Uns achá-lo-iam num cruzamento perdido e com ele seguiriam até ao fim do caminho, teimosos e abnegados, até que a morte desfizesse o que a vida fizera. Outros estavam destinados a desconhecê-lo, a procurar sem o descobrirem, a cruzar-se numa esquina sem jamais se olharem, a ignorar a sua perda até desaparecerem na neblina que pairava sobre o solitário trilho para onde a vida os conduzira. E havia ainda aqueles fadados para a tragédia, os amores que se encontravam e cedo percebiam que o encontro era afinal efémero, furtivo, um mero sopro na corrente do tempo, um cruel interlúdio antes da dolorosa separação, um beijo de despedida no caminho da solidão, a alma abalada pela sombria angústia de saberem que havia um outro percurso, uma outra existência, uma passagem alternativa que lhe fora para sempre vedada. Esses eram os infelizes, os dilacerados pela revolta até serem abatidos pela resignação, os que percorrem a estrada da vida vergados pela saudade do que poderia ter sido, do futuro que não existiu, do trilho que nunca percorreriam a dois. Eram esses os que estavam indelevelmente marcados pela amarga e profunda nostalgia de um amor por viver"

José Rodrigues dos Santos
A Filha do Capitão

quinta-feira, maio 07, 2009


Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso.

Fernando Pessoa




"A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico cujo campo lhe é
tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco,
esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um
campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações;
nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da
nossa vida"
Fernando Pessoa

sábado, abril 25, 2009

Quero dizer-te uma coisa simples:
A tua ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma; mas que não deixa, por isso, de deixar alguns sinais. Podia dizer-te e acrescentar que as coisas simples também podem ser complicadas, quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade. Porém, é o sonho que me traz a tua memória e a realidade aproxima-me de ti. Agora que os dias correm mais depressa, e as palavras ficam presas numa refracção de instantes, quando a tua voz me chama de dentro de mim - e me faz responder uma coisa simples como: dizer que a tua ausência me dói, dizer que te adoro, ou ainda o quão importante és para mim.
Nuno Judice

sexta-feira, abril 24, 2009


Quero definir-te o que é este sentimento:
o que pertence à esfera daquilo que a razão
não domina, ou simplesmente nasce da noite,
e de tudo o que a envolve. Falo de uma
íntima relação entre os seres, de emoções
que se transmitem para além de palavras e
conceitos, de um encontro de corpos na
esfera do segredo. Dir-me-ás: "Para que precisas
de uma explicação para o amor?"
Mas é a sua inutilidade que me interessa;
a dádiva, o simples dizer que as coisas são
assim porque são, e para além disso tudo se complica.
Podes, então, rir do que te digo;
ou simplesmente dizer-me que
as palavras nada substituem, e que tudo o que
elas nos dão está a mais. Mas o amor
pertence-nos. Não o podemos deitar fora;
nem fingir que não existe, como não existe
o infinito, a transcendência, a abstracção
divina, para quem só crê no concreto.
É verdade que o amor não se vê: o que vejo
são os teus olhos, a ternura súbita das
suas pálpebras, e o que elas abrem e
escondem numa hesitação de luz.
Eis, então, o que define este sentimento:
um intervalo, uma distracção do tempo,
a divina abstracção do infinito
na transcendência do real.

Nuno Júdice

quinta-feira, janeiro 22, 2009

O ímpeto de crescer e viver intensamente,
foi tão forte em mim, que não consegui resistir a ele.
Enfrentei meus sentimentos.
A vida não é racional!
É louca e cheia de mágoa.
Mas não quero viver comigo mesma.
Quero paixão, prazer, barulho, bebedeira, e todo o mal.
Quero ouvir música rouca, ver rostos, roçar em corpos,
beber um Benedictine ardente.
Quero conhecer pessoas perversas, ser íntima delas.
Quero morder a vida, e ser despedaçada por ela.
Eu estava esperando.
Esta é a hora da expansão, do viver verdadeiro.
Todo o resto foi uma preparação.
A verdade é que sou inconstante,
com estímulos sensuais em muitas direções.
Fiquei docemente adormecida por alguns séculos,
e entrei em erupção sem avisar.
Anais Anin